domingo, 30 de novembro de 2014

#26 - JANGADA, Teobaldo Virgínio

Vai o marinheiro pôr no mar
a mala grande de herói 
que embarca todos os dias
e segue na derrota sem velas
nem casa de navegação.

Vai fechando os olhos aos anos desertos
esmigalhando nas mãos
as horas que lhe envelhecem a vigília
e como criança no encantamento de uma fantasia
dá a direcção de mar largo
ao pauzinho que põe na água.

Olhos postos na hora grande
duma partida que inventa mastros cabos,
companheiros de viagem de várias falas,
qual virgem que espera até às rugas
o momento do amor...
ou figura antiga na contemplação mística
dum sonho sonhado
(o mar porta aberta dum fruto quase proibido)
inclina-se com a brisa e sonha
que não está sonhando!

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

#25 - BUGANVÍLIA, José Luandino Vieira

Branca a buganvília explode
no odiado muro em frente

à volta a vida berra crente
e o negro sangue estanca

vermelha a buganvília
rompe o muro da frente

terça-feira, 25 de novembro de 2014

#24 - APONTAMENTO, João Abel

curvada ao peso
ao peso brutal
dos blocos de pedra
e os olhos no chão
os olhos na terra
anda na obra
levando o cimento
a pedra e a cal
ao mestre pedreiro
e curvada ao peso
ao peso da vida
de lágrimas secas
e sangue sem vida
traz o seu filho
preso nos panos
dobrados nas costas
nas costas curvadas
ao peso brutal
do cimento e da areia
que leva cantando
ao mestre pedreiro

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

#23 - ROMANCE DE TOMAZINHO-CARA-FEIA, Daniel Filipe

Farto de sol e de areia,
que é o mais que a terra dá.
Tomasinho-Cara-Feia,
Vai prà pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortuna, a mãe,
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho-Cara-Feia,
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sal e de areia,
foi prà pesca da baleia.

-- E nunca mais voltará.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#22 - NATAL CHIQUE, Vitorino Nemésio

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

#21 - É INÚTIL CHORAR, António Cardoso

É inútil mesmo chorar
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
por todos os que tombam pela verdade
ou que julgam tombar.
O importante neles é já sentir a vontade
de lutar por ela.
Por isso é inútil chorar.

Ao menos se as lágrimas
dessem pão,
já não haveria fome.
Ao menos se o desespero vazio
das nossas vidas
desse campos de trigo...

Mas o que importa é não chorar.
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
Mesmo quando já não se sinta calor
é bom pensar que há fogueiras
e que a dor também ilumina.

Que cada um de nós
lance a lenha que tiver,
mas que não chore
embora tenha frio.
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»