terça-feira, 30 de dezembro de 2014

#30 - DEPOIS DA FEIRA, Fernando Pessoa

Vão vagos pela estrada,
Cantando sem razão
A última esp'rança dada
À última ilusão.
Não significam nada.
Mimos e bobos são.

Vão juntos e diversos
Sob um luar de ver,
Em que sonhos imersos
Nem saberão dizer,
E cantam aqueles versos
Que lembram sem querer.

Pajens de um morto mito,
Tão líricos!, tão sós!,
Não têm na voz um grito,
Mal têm a própria voz;
E ignora-os o infinito
Que nos ignora a nós.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

#29 - EM TEMPO DE MISÉRIA, João Almeida

desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã

andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes

acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas

troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

#28 - "Eis-no aqui no caminho", Alexandre Dáskalos

Eis-nos aqui no caminho
traçado por nossa mão.
Cada braço traz um punho
e cada punho um punhal.

Bandoleiros na vida,
vida errante era o destino!
Nas costas nasceram traços
da vida dura, sem pão.

Rugas dos covais da vida
cemitérios de ilusão!...
Mortos, mortos mas com vida
quase à beira do chão.

Quase à beira do chão
rastejantes, vermes, podres!...
Pobre miséria do mundo
só o dinheiro é patrão.

Só o dinheiro é senhor
dos vermes sujos do chão

Cada verme traz um punho
Com uma faca na mão.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

#27 - VINDE, Ó POBRES, Jorge de Lima

Vinde os possuidores da pobreza
Os que não têm nome no século.
Vinde os homens da contemplação.
Vinde os que têm a língua mudada.
Vinde os forasteiros e vagabundos.
Vinde os homens descalços e os que têm
Os olhos cheios de espantos.
Jesus Cristo -- Rei dos Reis
Os vossos pés quer lavar,
O filho do marceneiro
Não vos pode abandonar.

domingo, 30 de novembro de 2014

#26 - JANGADA, Teobaldo Virgínio

Vai o marinheiro pôr no mar
a mala grande de herói 
que embarca todos os dias
e segue na derrota sem velas
nem casa de navegação.

Vai fechando os olhos aos anos desertos
esmigalhando nas mãos
as horas que lhe envelhecem a vigília
e como criança no encantamento de uma fantasia
dá a direcção de mar largo
ao pauzinho que põe na água.

Olhos postos na hora grande
duma partida que inventa mastros cabos,
companheiros de viagem de várias falas,
qual virgem que espera até às rugas
o momento do amor...
ou figura antiga na contemplação mística
dum sonho sonhado
(o mar porta aberta dum fruto quase proibido)
inclina-se com a brisa e sonha
que não está sonhando!

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

#25 - BUGANVÍLIA, José Luandino Vieira

Branca a buganvília explode
no odiado muro em frente

à volta a vida berra crente
e o negro sangue estanca

vermelha a buganvília
rompe o muro da frente

terça-feira, 25 de novembro de 2014

#24 - APONTAMENTO, João Abel

curvada ao peso
ao peso brutal
dos blocos de pedra
e os olhos no chão
os olhos na terra
anda na obra
levando o cimento
a pedra e a cal
ao mestre pedreiro
e curvada ao peso
ao peso da vida
de lágrimas secas
e sangue sem vida
traz o seu filho
preso nos panos
dobrados nas costas
nas costas curvadas
ao peso brutal
do cimento e da areia
que leva cantando
ao mestre pedreiro

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

#23 - ROMANCE DE TOMAZINHO-CARA-FEIA, Daniel Filipe

Farto de sol e de areia,
que é o mais que a terra dá.
Tomasinho-Cara-Feia,
Vai prà pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?

Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortuna, a mãe,
que é velha e não tem ninguém,
chora pelo seu menino.

Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.

Tomasinho-Cara-Feia,
(outro nome, quem lho dá?)
farto de sal e de areia,
foi prà pesca da baleia.

-- E nunca mais voltará.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

#22 - NATAL CHIQUE, Vitorino Nemésio

Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Minha alma vã desaparece
Na minha pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa saiu mal.

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado...
Só esse pobre me pareceu Cristo.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

#21 - É INÚTIL CHORAR, António Cardoso

É inútil mesmo chorar
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
por todos os que tombam pela verdade
ou que julgam tombar.
O importante neles é já sentir a vontade
de lutar por ela.
Por isso é inútil chorar.

Ao menos se as lágrimas
dessem pão,
já não haveria fome.
Ao menos se o desespero vazio
das nossas vidas
desse campos de trigo...

Mas o que importa é não chorar.
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»
Mesmo quando já não se sinta calor
é bom pensar que há fogueiras
e que a dor também ilumina.

Que cada um de nós
lance a lenha que tiver,
mas que não chore
embora tenha frio.
«Se choramos aceitamos, é preciso não aceitar»

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

#20 - ANESTESIA, Agostinho Neto

Palpo o pó da terra
e em meus dedos
só sinto
o receio de pisar
terrenos proibidos.

Aspiro o aroma das flores
e só me figuro
o desespero
e a vala comum.

Entoo canções alegres
e o eco
responde-me em gritos amargurados.

Quero sonhar dias felizes
futuros cor de rosa
mas só vejo
meus dias escuros
carregados de tristeza.

sábado, 25 de outubro de 2014

#19 - RECITATIVO VII, Vasco Graça Moura

a necessidade
é a mãe de toda a cultura:

vi os do porto,
visível multidão de almas,
irados,
invadindo;

diziam a cidade
minguada de bom vereamento e o único
precisamente o único sítio que tinham
era onde cair mortos
e nem sequer dentro das casas: estas
têm quinze famílias diferentes
e pela sua
dilatada extensão se chamam ilhas

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

#18 - DUAS DAS FESTAS DA MORTE, João Cabral de Melo Neto

Recepções de cerimônia que dá a morte:
o morto, vestido para um ato inaugural;
e ambiguamente: com a roupa do orador
e a da estátua que se vai inaugurar.
No caixão, meio caixão meio pedestal,
o morto mais se inaugura do que morre;
e duplamente: ora sua própria estátua
ora seu próprio vivo, em dia de posse.

                            *

Piqueniques infantis que dá a morte:
os enterros de criança no Nordeste:
reservados a menores de treze anos,
impróprios a adultos (nem o seguem).
Festa meio excursão meio piquenique,
ao ar livre, boa para dia sem classe;
nela, as crianças brincam de boneca,
e aliás com uma boneca de verdade.

domingo, 19 de outubro de 2014

#17 - BICHO-GENTE, Arménio Vieira

Numa lamela de sol
uma larva de fome
na fome da hora
uma hora de bicho

(homem ou larva
bicho ou gente?)

Na fome da hora
uma larva estremece
na hora de bicho
um verme apodrece.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

#16 - A UMA QUALQUER, Yolanda Morazzo

Não foi por amor ao dinheiro
nem foi por jóias
nem sequer por um vestido de seda.

Nem foi também por teres casa
móveis decentes, melhor vida.
Não, não foi por nada disto.

Tu, só tu sabes por que sorriste
e o teu coração bateu um pouco mais forte
quando o barco americano entrou no porto...

domingo, 21 de setembro de 2014

#15 - PRELÚDIO, Alda Lara

Pela estrada desce a noite
Mãe-Negra, desce com ela...

Nem buganvílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
em duas faces cansadas.

Mãe-Negra tem voz de vento,
voz de silêncio batendo
nas folhas do cajueiro...

Tem voz de noite, descendo,
de mansinho, pela estrada...
Que é feito desses meninos
que gostava de embalar?...


Que é feito desses meninos
que ela ajudou a criar?...
Quem houve agora as histórias
que costumava contar?...

Mãe-Negra não sabe nada...

Mas ai de quem sabe tudo,
como eu sei tudo
Mãe-Negra!...

Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar...

Muitos partiram p'ra longe,
quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
mãos cruzadas no regaço,
bem quieta bem calada.

É tua a voz deste vento,
desta saudade descendo,
de mansinho pela estrada...


Lisboa, 1951

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

#14 - FUGA, Nuno Júdice

Canto a noite dos clandestinos, os que se
encostam aos muros e falam com o vento,
os que se vestem de negro, para se confundirem
com a noite, os que se deixam perseguir pela
sua sombra, e a expulsam de trás de si, quando
alguém se aproxima. Acompanho os seus gestos lentos,
saboreando o instante do próximo
encontro; e ouço as suas palavras na voz baixa
do cais, confundindo-se com
o ruído da água contra a pedra. Entro com eles
na barca da solidão, falando com o vazio
como se a única resposta fosse
a que nasce do musgo das caves. Afasto
de ao pé deles os cães que os seguem;
e vejo-os desaparecerem, mais
e mais longe, onde o futuro se dissipa
sob a névoa cinzenta das madrugadas
que nunca chegaram.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

#13 - DO LAVRADOR, Mário de Oliveira

de tudo plantou na vida
no exato tempo e na hora.

pegando firme na enxada
cavou fundo na memória.

primeiro quando de colo
plantara leite materno,

logo à frente plantaria
brinquedos, livro, caderno.

semeou depois nos brejos
grão de arroz e sua sala:

não tardou que a casa toda
fosse espalhada na vala.

mais tarde deitou seu sono
dentro de cascas de ervilha

cultivou tomate e soja
sem salitre e fantasia.

quarta-feira plantou fava
muitas quintas plantou milho,

pôs de adubo nas raízes
esterco e leite do filho.

curvado sobre si mesmo
plantou de tudo na vida:

mudas tenras e sementes
do que não teve e não tinha.

plantou coisas que o terreno
reduz a brisas, quimera,

quando o outono desce lento
quando explode a primavera.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

#12 - POEMA, Onésimo Silveira

Para quê chorar
Se as suas mãos são limpas
A sua culpa inocente
E a mudez das suas vozes
Bandeiras desfraldadas?

Chorar só porque levam
A esperança amachucada
Na sua mala de contratados;
Chorar só porque sangram os seus pés
Na lonjura dos caminhos;
Chorar só porque eles choram
Como choram os meninos sem pão
-- Não, não vale a pena chorar!

Para quê chorar
Se na sua mala de contratados
Levam também os farrapos das suas afrontas?

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

#11 - SONETILHO VELHO E ACTUAL, José Fernandes Fafe

Companheiro, ouves os choupos
gemendo mágoas de agora?
Os ventos sibilam roucos
a hora da nossa hora.

Noite de almas, noite fria...
O luar não traz mensagem...
Cada noite tem um dia.
Noite tirana, que a rasguem.

Sofro, noite... Sofre gente...
Cantam galos para o nascente...
Futuro, como nos pagas?

Pausa mais pausa é demência.
Na noite da consciência
versos só podem ser pragas!

domingo, 31 de agosto de 2014

#10 - O ACENDEDOR DE LAMPIÕES, Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões na rua!
Este mesmo que vem imperturbavelmente
parodiar o Sol e associar-se à Lua
quando a sombra da noite enegrece o poente.

Um, dois, três lampiões e continua
outros mais a acender interminavelmente
à medida que a noite aos poucos se acentua
e a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:
ele que doura a noite e ilumina a cidade
talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua:
crenças, religião, amor, felicidade,
como esse acendedor de lampiões na rua!

sábado, 30 de agosto de 2014

#9 OS NAVEGADORES, Sophia de Mello Breyner Andresen

Eles habitam entre um mastro e o vento.

Têm as mãos brancas de sal.
E os ombros vermelhos de sol.

Os espantados peixes se aproximam
Com olhos de gelatina.

O mar manda florir seus roseirais de espuma.

No oceano infinito
Estão detidos num barco
E o barco tem um destino
Que os astros altos indicam.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

#8 - O DETRITO DAS ÁGUAS, A. M. Pires Cabral

Neste local, 
o rio avoluma-se inesperadamente.
Alarga-se, alaga
terras que deram milho, casas onde
a fome se amontoou
e foram gerados filhos.

Sobre tudo isso o Douro deposita
o detrito das águas.

Cujo peso sujeita lá em baixo
baixios que perderam a validade.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

#7 - "límpidas de dor, velhas", Valter Hugo Mãe

límpidas de dor, velhas
deles, matam-nos assim
que adormecem, servem-se do
machado e não os deixam
muito tempo no sono, não
vão sonhar que agarram a arma
antes que elas o façam, e afirmam
que os lamentam, esmagados,
elas aos gritos.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

#6 - BUSCANDO A CRISTO, Gregório de Matos

A vós correndo vou, braços sagrados,
nessa Cruz sacrossanta descobertos
que, para receber-me, estais abertos,
e, por não castigar-me, estais cravados.

A vós, divinos olhos, eclipsados
de tanto sangue e lágrimas cobertos,
pois, para perdoar-me, estais despertos,
e, por não condenar-me, estais fechados.

A vós, pregados pés, por não deixar-me,
a vós, sangue vertido, para ungir-me,
a vós, cabeça baixa, por chamar-me.

A vós, lado patente, quero unir-me,
a vós, cravos preciosos, quero atar-me,
para ficar unido, atado e firme.

domingo, 25 de maio de 2014

#5 - OS ARAUTOS NEGROS, César Vallejo

Há pancadas tão fortes na vida... Eu sei lá!
Pancadas como do ódio de Deus; como se sob elas
a ressaca de todo o sofrimento
estagnasse na alma... Eu sei lá!

Poucas; mas acontecem... Abrem leivas escuras
no rosto mais duro e no dorso mais forte.
Serão talvez os potros de átilas selvagens;
ou os arautos negros que nos envia a Morte.

São as profundas quedas dos Cristos da nossa alma,
de uma fé adorável que o Destino blasfema.
Tais pancadas sangrentas são as crepitações
de um pão que na porta do forno se nos queima.

E o homem... Pobre... Pobre! Volta os olhos, como
quando sobre o seu ombro uma palmada o vem chamar;
volta seus olhos loucos, e todo o já vivido
como um charco de culpa estagna em seu olhar.

Há pancadas na vida tão fortes... Eu sei lá!


(versão de José Bento)

quinta-feira, 15 de maio de 2014

#4 - LEZÍRIA, Miguel Torga

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa
Que se debruça e já nem mostra o rosto.
Cantam, plantadas n'água,
Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

Cantam o Norte e o Sul duma só vez,
Cantam baixo, e parece
Que na raiz humana dos seus pés
Qualquer coisa apodrece.

terça-feira, 6 de maio de 2014

#3 - PORQUE, Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque os outros se mascaram mas tu não.
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se comprem e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

#2 - "O lenhador caminha curvado pelo peso", Adalberto Alves

O lenhador caminha curvado pelo peso.
Leva às costas séculos de madeira.
Queima-la-á para se aquecer um instante.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

#1 - "Encontrou naquele janeiro trabalho", João Miguel Fernandes Jorge

Encontrou naquele janeiro trabalho
nas obras.
O seu melhor era o abrir da lancheira
o termo de alumínio canelado protegendo

o espelhado vidro
o café mantinha-se quente por muitas
horas.
As botas de velhos atacadores já com

buracos
as grossas meias de algodão a camisola
rota num dos braços o fato-macaco
a negra barba mal feita e os tijolos

erguendo a lenta parede dos dias.
O reboco o triturar a pedra
o cimento quase parte das mãos
a poeira doendo os olhos.

Sem ninguém, entre as fasquias andaimes e
caliça
sem espaço para legenda bebe café entre
o vigésimo terceiro e quarto andar.